Uma medida provisória sob medida para os empreiteiros

Pois bem, saiba ainda que a MP 700 autoriza também as empreiteiras a ingressarem sem ordem judicial nas áreas declaradas de utilidade pública
Por: Júlio Moreno

Você já imaginou algum país delegar para as empreiteiras o direito de promover desapropriações de utilidade pública? Impossível? Pois bem, esse país existe e você mora nele.  A Medida Provisória 700/2015 assinada pela presidente Dilma Rousseff em 8 de dezembro passado, com o objetivo de atualizar a Lei de Desapropriações editada por Getúlio Vargas, inclui tal dispositivo. Como as MPs têm força de lei, a medida já produz efeitos imediatos. Ela é uma das vinte que, nesse momento, “trancam” a pauta do Congresso.
Ficou assustado? Saiba então que a coisa é bem mais séria. A autorização amplia o poder de atuação das construtoras licitadas via “contratação integrada”, ou seja, com base apenas no anteprojeto do empreendimento a ser realizado. 
Incrédulo? Pois bem, saiba ainda que a MP 700 autoriza também as empreiteiras a ingressarem sem ordem judicial nas áreas declaradas de utilidade pública, para realizarem inspeções e levantamentos de campo, “podendo recorrer, em caso de resistência, ao auxílio de força policial”.
Tivessem condições de se expor nesse momento,  as empreiteiras envolvidas na Operação Lava Jato certamente apoiariam a MP 700, pois segundo o governo seu objetivo é “estimular o investimento privado em infraestrutura no país, a partir da desburocratização da legislação relativa à desapropriação por utilidade pública”. O setor imobiliário de São Paulo já o fez, por meio do Sindicato da Habitação (Secovi), que a saudou como “uma revolução positiva para os novos modelos de desenvolvimento urbano”.
Não é bem assim o que pensam, de forma unânime, cerca de duzentos arquitetos e urbanistas que na semana passada participaram, em Brasília, do IV Seminário Legislativo promovido pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil. Para Haroldo Pinheiro, presidente do CAU/BR, a MP 700/2015 escancara de vez a relação de interesses entre o governo e as empreiteiras, envolvendo também o Congresso, em prejuízo da sociedade.
“Nos últimos anos temos visto – diz ele – um encadeamento de leis, MPs e outras iniciativas dos Poderes Executivo e Legislativo que permitem a contratação de obras sem projeto completo, o que significa entregar para o setor privado o planejamento dos espaços e edificações públicas de nossas cidades e da infraestrutura do país, determinando seu custo, qualidade, condições de manutenção, enfim privatizando o que é dever do Estado. Agora, com a medida provisória, terceiriza-se também procedimentos jurídico-administrativos”.
O que deu início ao encadeamento foi uma lei de 2011 que instituiu o (Regime Diferenciado de Contratações Públicas) com o objetivo de acelerar as obras do “legado da Copa”, o que não se concretizou na maioria dos casos, além de não evitar aumento de custos, ao contrário do que afirma a exposição de motivos da MP 700. O VLT de Cuiabá é um exemplo emblemático.
A “contratação integrada” é uma das modalidades do RDC e passou a ser utilizada também, com a edição de novas leis,  em obras do PAC, do SUS, do DNIT e outras. Detalhe importante: o RDC foi inspirado em decreto de 1998 que criou um regime licitatório simplificado para a Petrobrás, brecha que proporcionou alguns dos escândalos investigados pela PF e denunciados pelo Ministério Público.  
Para Sérgio Magalhães, presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), na falta de um projeto completo que detalhe o empreendimento, inclusive as áreas a expropriar, a mudança é temerosa. “A empresa levará ao Executivo o que lhe convém comercialmente, e não necessariamente o melhor para o interesse público, assim como para as pessoas que podem ser alvo de desapropriações. Sem projeto, fica tudo sem controle”. Pela MP, se o custo final for superior ao orçado, a diferença poderá ser paga pela empreiteira, ou alternativamente pelo Poder Público ou por ambos, a depender do disposto no edital que originou a contratação.
Antes da MP, além da União, Estado e Municípios, apenas as concessionárias ou entidades públicas ou que exerçam funções delegadas poderiam fazer desapropriações de utilidade pública.
Outro problema grave, na visão do jurista Victor Carvalho Pinto, “é a possibilidade de imissão provisória na posse do imóvel, que a MP nada muda, ainda que existam obrigações como a realocação de famílias de áreas ocupadas coletivamente por assentamentos”.  Além disso, a MP “cria um sistema de registro e transferência dessa posse provisória, permitindo que os empreendimentos sigam em frente enquanto tramita a ação de desapropriação”. Havendo imissão de posse, o expropriante é obrigado a pagar juros compensatórios até que a desapropriação se consume de vez. A MP também inova a respeito, ao dizer que os juros seriam de “ate 12% ao ano”, enquanto decisão do STF fixa o percentual em exatos 12% ao ano.
A arquiteta e urbanista Raquel Rolnik julga uma “perversidade” as empreiteiras terem “carta branca” para adentrar e inspecionar até o interior das casas das áreas de interesse dos empreendimentos. “Tais práticas podem instalar um reinado de terrorismo de Estado nas comunidades sob desapropriação, absolutamente incompatível com a inviolabilidade do domicílio prevista pela Constituição”. E tudo isso para fazer o que na área? Nada impede que o projeto de “utilidade pública” inclua não só escolas ou praças, mas também shoppings, para viabilizar comercialmente o empreendimento. Mais: as empreiteiras terão a permissão para alienar as áreas cujos empreendimentos se comprovarem inviáveis ou “perderem” o interesse público.
Nâo fosse trágico, é curioso lembrar que em  meados de 1882 Dom Pedro II criou um programa habitacional de interesse social e foi precursor no uso de Parcerias Público Pivada (PPPs), do Minha Casa Minha Vida (MCMV) e em concessões a empresários semelhantes à MP 700, dando ao empresário Américo de Castro, do Rio de Janeiro,  “o direito de desapropriação relativamente aos terrenos particulares compreendidos nos ditos planos”. O fato, comenta com ironia o arquiteto e urbanista Jorge Guilherme Francisconi,  “pode nos levar à conclusão de que procedimentos do patrimonialista Império brasileiro inspiram atos adotados em pleno século XXI”.

FALAR COM JORGE FRANCISCONI